VALÉRIA GUERRA, POETISALUZ

JUSTIÇA SEMPRE..........

Textos


                                                                             ZORAIDE

 

Valéria Guerra Reiter

 

Chovia torrencialmente no Central Park naquele 22 de fevereiro de 2023 e Norma se encolhia no sofá. Estava cansada. Esticou as pernas compridas e sentiu a presença peluda de Jenny; que depois do rápido movimento da dona escapuliu do aconchego, e foi correndo para perto da lareira eletrônica que ficava no final da ampla sala.

 

 Jenny se enroscou toda, após três voltinhas clássicas sobre si, e se deitou no tapete redondo em frente ao artefato reconfortante.

 

  Norma olhou para trás de si e através da vidraça ampla enxergou o clima típico do inverno lá fora...

 

  O silêncio reinante não animava. Norma emergiu de sua latência e apalpou minuciosamente cada centímetro do confortável e grande sofá tipo cama onde jazia delituosa; suas mãozinhas ágeis agora buscavam seu celular.

 

  Sua jornada fora em vão...movida por um instinto de autopreservação; a filha de Esther e William se ergueu da deliciosa madorna, sentou e apertou um botão no próprio sofá de couro macio.       

 

 No mesmo instante uma senhora muito bem trajada adentrou o recinto e disse: - Bom dia senhora. Dormiu bem? Posso servir seu café?

 

 E a mulher inquerida, apenas acenou positivamente com a cabeça, sem expressar palavras. Norma caminhou até ela e começou a chutá-la incessantemente. Até que sua cabeça fosse arrancada e seus circuitos internos sobrepujassem o tecido dilacerado de todo o seu corpo: de um metro e sessenta e cinco centímetros.

 

                Já de posse do seu arrojado celular a senhorita Jean já desfrutava do excelso conforto do clube interno, localizado no mais alto residencial do “corredor dos bilionários” e ao falar no telefone dizia: - A torre fica na 217 West 57th entre a Broadway e a 7th Avenue e tem vistas magníficas do Central Park. Se você optar por deixar o conforto de sua enorme residência, as comodidades do edifício incluem o Central Park Club, um clube privado apenas para membros com mais de 4.600 metros quadrados com piscina privativa, restaurante, solário, academia e SPA. A alegria daquela filha de pai brasileiro e de mãe canadense não combinava com a fúria de destruição causada há uma hora.

 

 Engenheira eletrônica como a mãe, de seu pai só herdou a perseverança; por isso...ao olhar a hora: voou.

 

  Chegou ao seu maravilhoso “jardim suspenso”, que era como ela chamava o banheiro principal de seu apartamento. Todo de mármore negro e envidraçado do chão ao teto. Ela tomou um banho majestoso, e pós tal gozo solicitou um robô local para trazer seu almoço.  A campainha tocou, e a mulher alta envolvida em toalha felpudíssima amarela gritou: - Use a Key!

 

  As portas largas de vidro se abriram, e em seguida; uma mulher de cabelos curtos e platinados adentrou a primeira sala, seus olhos verdes faiscavam. Ela trazia uma bandeja luxuosa que continha salmão e salada russa. Repousou a refeição sobre uma pequena mesa de mármore carrara; no canto oposto a lareira. E vislumbrou um braço robótico caído entre a referida opção e o tapete onde estava a cadelinha Jenny, esticada, depois de comer sua ração favorita. ela agora dormia fausta.

 

  A entregadora esguia usava roupas esportivas. Norma enfim chegou à sala e vendo a mulher comentou: - Não tinha robôs disponíveis hoje? Mas a moça só meneou a cabeça positivamente.

 

  A engenheira agradeceu o serviço e disse a chave/senha de abertura da grande porta transparente, a fim de que a atendente saísse. Porém um segundo antes de ela partir fez mais um questionamento: - Qual o seu nome?

 

 - Zoraide, respondeu ela com voz rouca.

 

   Norma sentiu um arrepio pela coluna vertebral e ficou tonta, parecia hipnotizada.  Sentou e sorveu seu almoço, como rainha. Brincou com a corgi Jenny e seguiu para o Canadá, ela resolveu interromper as férias de apenas quinze dias (bem no meio); depois que seu robô pessoal de cinco anos ter falhado naquela manhã. Ela trabalhava junto a mãe em um projeto pioneiro de robôs domésticos, mas a progenitora e filha discordavam em muitos pontos do plano de ação. Discutiam bastante especialmente no tocante a substituir a população humana por uma população de clonados substitutos, uma geração híbrida.

 

A ética que impera na Canadian-robotics para o progenitor de Norma precisa ser estudada filosoficamente. Dentro de um contexto extremamente sociológico. William nasceu em Ouro Preto-MG, depois que sua mãe inglesa, veio conhecer o Brasil, em 1962.

 

   Ester, filha de mãe canadense e pai baiano ama a tecnologia e o dinheiro. Ama o dinheiro daquele ponto de vista gerador do melhor conforto.

 

   Aos sessenta e oito anos Ester quer um mundo com “viagens no tempo”; quem sabe acessível a todos e todas.

 

  Na tarde de vinte e cinco de fevereiro, o fruto do casamento feliz entre Ester e William voltou à “cidade-luz” dela: Nova York, que a esperava com todo o luxo necessário ao seu descanso pós-moderno.

 

  Quando chegou do trabalho, a doutora Norma percebeu que a pequena Jenny não a recebeu, como costumeiramente. Então percorreu todo o imóvel e nem sombra da remanescente filhote inglesa canina, um presente da finada rainha da Inglaterra à Norma Jean.

 

  - Jenny...mamãe chegou amor! Vamos assistir “grudadinhas” “Coragem, um cão covarde”? Comendo pipocas?

 

 Um clarão surgiu no fundo da sala enorme...e dele saiu uma mulher carregando um braço estraçalhado. A engenheirinha robótica correu daquela visão, após o braço ter sido atirado em sua direção.

 

  Zaradát...Zaradát ...Zaradát foi o nome que mentalmente sufocava a mente de Norma. Que corria dentro dos oito cômodos daquele apartamento fugindo da morte.

 

  Zaradát é Zoraide; e significa mulher cativante.  - Fuja agora sua mulherzinha traiçoeira dizia a aparição feminina que perseguiu Norma durante quatro dias.

 

  Dia 28 de fevereiro o alarme da grande porta de vidro destravou, a abrindo... foi movido pelo odor da cadaverina que impregnou o sistema químico. O som do alarme trouxe o socorro à cena.

 

  Sophia, um robô local ocupou o espaço, achou o primeiro corpo, depois o segundo e por fim o terceiro...

Ela logo acionou o administrador geral do Central Park Club, que achou estranhíssimo tais crimes brutais, há quatro dias havia visto os pais de Norma na área VIP, do prédio mais caro no entorno de Mahattan subirem alegres e abraçados.

 

 O primeiro corpo era de William, o segundo de Esther, e o terceiro de Leonard, o assistente de projetos robóticos de Norma.

 

  Quatro robôs especialistas em reconhecimento cadavérico vieram recolher os restos mortais.

 

  Dia 03 de março de 2023, no Canadá, em um belo chalé cercado pelo som cálido de dois rios gelados e sob a neve pueril que recaía sobre o entorno de uma floresta temperada; se ouvem risos agudos vindos de uma copa/cozinha repleta de bancadas alvas com geleias e brioches. Pela vidraça se enxergava a silhueta de duas damas aparentando contentamento e brindando em uma linda mesa de plátano-bastardo.

 

 A mais alta sugere um brinde ao sucesso do projeto Zaradát, e a que carrega um exemplar de corgi no colo diz: Por que não? Se hoje somos donas do mundo, devemos isso a uma encantadora mulher morta: Esther.

 

       Jenny desce do recôndito colo da agora dona majoritária da Canadian-robotics

E se deita no tapete felpudo que recobre o Hall que conduz a primeira sala interior: e começa a assistir as peripécias de Rosie: empregada da família Jetsons; na imensa TV, que reproduz um de seus desenhos preferidos.

 

 

                                                              2034

 

    Uma mulher de aspecto sujo, aparentando 80 anos sente fome, sente frio e uma dor intensa na alma. Ela está em posição fetal. Seu olhar é profundamente triste. Ela se levanta e remexe em alguns gravetos no fundo daquela caverna gélida. Ouve um barulho e teme.

 

    Se coloca em posição de guarda, se encontra magra. Se envolve em uma coberta mastigada pelo tempo, treme e chora baixinho. Alguém a segura mansamente balbuciando:  - sou eu...

 

   A senhora com mãos endurecidas e envelhecidas descerra seu improvisado cobertor e fica calma quando vê William. William a abraça e mostra o alce ferido de morte à sua frente. Ela chora novamente. Contempla seu alimento pesarosa, enquanto um homem aparentando noventa e cinco anos friccionava pedras para gerar o fogo necessário para transformar a vida em alimento. Ele também chorava.

 

   Daqui a dois dias eles seriam nômades novamente, e a jornada requeria muita energia na bagagem citológica, tinham uma missão hercúlea e geracional a cumprir.

 

O planeta Terra se transformou em uma grande fábrica de robôs e híbridos, e em breve não existiriam plantas, nem animais. O projeto fora assinado e celebrado há dez anos. Tudo muito parecido com o mundo frio e tecnológico dos Jetsons, com a tênue diferença de que aqueles ainda eram humanos.  O projeto era quase perfeito, a não ser pelo erro cometido há uma década: dois exemplares humanos sobreviveram ao ataque assaz hipnotizante da morte planejada. Zoraide trabalhou dos dois lados, por isso Esther enviou uma híbrida sua, e um híbrido de William ao magnífico apart da filha ambiciosamente ingrata. Eles morreram lá dentro.

 

  Infelizmente, a humanidade evaporou, e para salvar o planeta, recriando o gênero Homo, só a força física e mental de um novo Adão e de uma nova Eva. O sol brilhava sobre o velho Canadá, e o último exemplar vivo - no planeta- de Canis familiaris latia alegre em frente a porta do quarto de Zoraide.

 

  O androide estava na bateria, e depois da carga vestiu-se rapidamente e atendeu com carinho ao apelo canino; em seguida chamou Norma para passearem lá fora. Já não havia muitos pássaros, os robôs e híbridos não gostavam do seu som.

 

    O cérebro da filha de William ainda possuía 20 mil neurônios, que (de vez em quando) exigiam um brioche no café-da-manhã, ou até mesmo um copo d’água. No mais, seus circuitos robóticos precisavam de carga diária.

 

   As duas percorreram um quilômetro de caminhada e voltaram a casa. Zoraide correu até o ateliê para terminar a tela iniciada há um mês. Enquanto Norma procurava a pequena corgi.

 

    Ela chamava Jenny com preocupação, sua cadelinha tinha feito 10 anos, foi neste momento que se ouviu um som diferente que vinha de seu laboratório, a engenheira acorreu ao recinto com pressa e se deparou com uma mulher envolvida (em trapos) manuseando a corgi, ela gritou, porém Esther a esbofeteou com uma luva de beisebol. Norma caiu desmaiada.

 

   A mulher concluiu sua coleta e soltou a cadela, que tentou acordar sua dona, com lambidas afetuosas.

 

   A mulher ficou inerte por duas horas, e ao recobrar seus sentidos procurou suas companheiras por toda a casa, sem sucesso; ela ligou para Rosie, sua assistente na empresa. A noite chegou mui rápido e Rosie questionou a mulher de 37 anos sobre o sumiço da cachorra e de Zoraide. Elas desceram ao porão e ninguém lá estava. Um ano se passou e nunca mais as duas foram vistas.

 

  - Belo? Indagou a filha do filósofo e geneticista Dr. William enquanto contemplava a pintura de Zoraide dependurada na parede do laboratório. O quadro retratava uma floresta de árvores cinzas. E naquele instante lembrou da definição do termo "belo" por Pierre Bourdieu: " é a tradução num pedaço de matéria de uma ideia entendida pelo homem como verdadeira"

 

  Era um dia de março de 2035, ao meio-dia, Norma ouviu um som de latidos e ao mesmo tempo um som de alce. Quando olhou na alameda interior viu Jenny com quatro filhotes metade alce e metade corgi.  Sua vista escureceu e ela caiu. Despertou em uma maca e estava amarrada. Sentiu a barriga mexida. E viu uma mulher magra e maltrapilha junto de um ancião coberto por pele de animal: ambos a fitavam. Enquanto a mulher deitada tentava reconhecer Esther e seu pai William, de forma lenta e gradual, ela viu o rosto de Esther contrair e a senhora sucumbir ao chão. A meã fora golpeada na cabeça por outra mulher. William imediatamente despedaçou a assassina e agora serviçal do casal: a I.A. Zoraide.

 

  Da maca Norma chorava a perda de Zoraide. E William abraçando o corpo inerte da companheira de uma existência de mais de quarenta anos dizia: conseguimos querida, a humanidade, à guisa da cadela corgi, se inicia hoje, mesmo que de maneira anômala.

 

 

 

  Norma deu à luz a quadrigêmeos nove meses depois, e o velho William continuou ao seu lado. E caso sua experiência fracasse, ele precisa (antes de sua partida final) encontrar Noah, o filho de Leonard, que está na África...e Lilibeth, a filha de Leonard que está escondida em uma gruta de Lagoa Santa, em Minas Gerais: ambos, caso vivos, são os últimos humanos, além dele e de Norma, na face do Planeta ZORAIDE.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Valéria Guerra
Enviado por Valéria Guerra em 23/04/2023
Alterado em 04/06/2023
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